segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Poema do dia de hoje

As horas passaram,
Eu perdida.

Como escrever o poema do
dia de hoje, se
se agitam em mim as palavras dos
poetas de ontem?

Como escrever o poema do
dia de hoje, se
o dia foi sem poesia?

O poema do dia de hoje
é a fome do verso
que não escrevi,
é a procura ansiosa
do que não perdi.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Da solidão

Alguém terá dito, sabendo bem o que dizia, que mais vale estar só do que estar com quem nos faz sentir sós. Já Camões, falando do amor, achou a feliz expressão: "solitário andar por entre a gente". É isto que resume a essência da solidão: ter os outros ali tão perto e parecer que não há possibilidade de vencer a curta distância a que  eles estão. Mesmo aqueles que pensam que a sua solidão resulta da barreira das paredes, é desta mesma solidão que se queixam. Como explicar este paradoxo: que no mundo inteiro vivam tantos milhões de pessoas e não podermos encontrar aquela que venceria a nossa solidão. 
Imaginemos, como na música, que tal era possível, que o outro podia ser a palavra, que o outro podia ser o gesto, que o outro podia ser o refúgio, que o outro se podia abrir a nós e acolher-nos, apagando, talvez duas solidões, a nossa e a dele. Imaginemos que agora era possível estender a mão e tocar outro mão, que se apertava em torno à nossa, que um calor estranho invadia o frio do meu medo de estar só, inexoravelmente só.
A indiferença mata, mata mais do que as palavras. Sim, sabemos que verbalizar isto é abrir a caixa de Pandora. então vou eu agora, no meio da minha própria insanidade, pedir que me agridam por palavras, pedir a violência das palavras só porque me sinto só? No entanto, pensemos, mesmo que pareça absurdo ou surreal: eu posso responder à palavra do outro, a palavra de alguém que me fere, ainda que aguçada, ainda que um punhal, é dirigida a mim, reconhece a minha existência, faz de mim um objeto, faz de mim uma presença. E eu posso agitar-me com ela, posso pegar nela e devolvê-la, posso rejeitá-la e explicar porquê, posso analisá-la e argumentar contra ela. As palavras dão-me a possibilidade de me defender. Já a indiferença anula-me, apaga-me, rasura-me, não me reconhece, faz de mim uma abstração e eu nada posso fazer, a não ser ver-me como uma irrealidade, uma insignificância que nem uma palavra merece. Perante a indiferença, só uma saída me resta: sentir-me só.
Como se dizia num programa de rádio: "vale a pena pensar nisto".

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A fotografia

A Fotografia


            Estava pouca gente na estação de comboio. Sentada num dos bancos, olhava em volta desinteressada. Tinha sido mais um dia de trabalho, sentia-se cansada e não se focava particularmente em nada. O seu olhar vogava como um beija-flor, pousando aqui e ali muito rapidamente. Ouviu ao longe o ruído metálico do comboio sobre os carris e ergueu-se, aproximou-se da linha amarela, sem a pisar, nem um centímetro mais, tinha aquele receio inconsciente. O comboio imobilizou-se e ouviu-se o ruído característico dos freios, as portas abriram-se como quem suspira alto e as pessoas começaram a sair – muitas, cansadas, incaracterísticas – de regresso a casa, também de um dia cansativo. Rostos impenetráveis passaram por ela, corpos apressados e tensos tocaram-na impercetivelmente. Mais um dia…
            Como viajava sempre em contracorrente, o comboio estava praticamente vazio. Escolheu um lugar junto à janela, como era da sua preferência. Ouviu-se o apito a avisar o fecho das portas e um vulto pardo esgueirou-se rapidamente para dentro da carruagem. Talvez por causa da pressa, sentou-se inesperadamente ao seu lado. Como estava distraída não o reconheceu logo, só reparou quando ele a cumprimentou. Sorriu com surpresa, conhecia-o. Eram colegas de trabalho, não íntimos, nem sequer muito próximos, mas tinham estabelecido os laços que duas pessoas bem-educadas mantêm por cortesia. Acenos delicados, algumas palavras de circunstância trocadas numa pausa, comentários superficiais sobre assuntos efémeros de que não conseguiria lembrar-se mesmo que fizesse um esforço. Saber-se junto a um conhecido incomodou-a como a chuva ao Alberto Caeiro, era como ter um pé dormente. Agora não poderia submergir como sempre fazia na viagem de regresso, agora seria obrigada a manter com ele uma atenção forçada para sustentar o aspecto da pessoa bem-educada que realmente era.

            Ele falava-lhe da surpresa de a encontrar ali. Era assim todos os dias? Morava para os lados da cidade? Em que zona? Era interessante que viajassem todos os dias na mesma direção, na mesma linha, e nunca se terem encontrado. Afinal o mundo talvez não fosse assim tão pequeno como se insistia em estar sempre a dizer. A voz dele era muito mais agradável do que já tinha alguma vez reparado, era até muito mais agradável do que lhe apetecia que fosse naquelas circunstâncias em que gostava de estar sozinha. Viu-se a sorrir com gosto. Ele reparou no livro que ela segurava, O amor nos tempos de cólera, disse que já o tinha lido, perguntou-lhe sobre as suas impressões de leitura, comentou aquela forma de amar feita de uma lealdade e de uma entrega inabaláveis que suportavam uma espera que durava até à velhice avançada para se concretizar, acrescentou que, apesar de o livro ser uma obra prima, aquele amor lhe parecia exacerbado, pouco credível, ficção. Riu-se e era um riso grave, surdo, profundo que a encantou. Mas o que era aquilo, agora dava-lhe para reparar no homem, para avaliar a sensação de calor tépido que a presença dele lhe ia imprimindo nos sentidos. Ele ia fazendo as despesas da conversa, agora ia tecendo comentários sobre a escrita de Gabriel Garcia Marquez. Tinham ambos lido os livros do autor do realismo fantástico. Deve ter sorrido inconscientemente, porque ele lhe perguntou de que se ria, se não tinha gostado de O general no seu labirinto. Apressou-se a desfazer o mal entendido, disse qualquer coisa que teve a certeza de ter sido bastante disparatada e sentiu-se a fazer má figura. Concentra-te, concentra-te, mantém a boa imagem, não ajas como a tola que não és.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (V)

A viagem de autocarro começou com um forte balanço, enquanto subíamos por uma estrada que não podia deixar de ser íngreme, por estas paragens é assim. Nos lugares ao lado do meu viaja um jovem casal que vem de fazer a mesma rota que nós. Facto surpreendente, trazem consigo um bebé, que, pelos meus cálculos, não deve ter mais de nove meses. No chão repousa uma mochila de o carregar às costas. O bebé está cansado e resmunga. Com o balançar do autocarro, acabamos por adormecer, o casal e o bebé também.
A viagem é longa, quando acordo, sem saber quanto tempo decorreu, sou surpreendida pelas vistas espantosas: vales verdejantes mais abaixo da estrada, que corre sempre, parece-me, num equilíbrio muito precário à beira destas escarpas profundas. Há pequenos bosques de pinheiros por onde repousam vacas indolentes. A tarde já vai avançada. O bebé começou a chorar de impaciência e cansaço. Se fosse eu, começava a afligir-me, o que havia de afligir ainda mais o bebé (por isso nunca me meti nestas aventuras com crianças muito pequenas, mas por aqui, as crianças não parecem ser obstáculo nenhum e é uma lição que aprendo: no pasa nada). A mãe espanhola limita-se a cantar-lhe uma canção de embalar numa voz que não posso deixar de achar muito doce e a menina volta a adormecer. Eu já não durmo.
Dou conta de que o percurso até Cangas de Onis se faz por uma garganta que só pode ser o famoso desfiladeiro de Los Beyos. A estrada é muito estreita, mesmo assim tem duas faixas. A cada curva mais fechada, ficamos com a impressão que o autocarro vai embater na parede oposta desta estreita passagem que a montanha permitiu. As paredes são abruptas – agora sei exatamente o significado desta palavra – ou seja, a pique, de rocha maciça, mas recortada de maneira caprichosa. Não consigo desprender os olhos, há momentos em que uma parede a direito me corta a respiração, entre o medo que o autocarro se roce por ela, cortando-se naquela lâmina, e de que se afaste correndo o risco de mergulhar no precipício, não consigo perceber o que me faz suspender a respiração. De vez em quando, cruzamos um rio numa ponte de que mal percebo os contornos. As cores variam entre o verde muito verde e todas as tonalidades de cinzento, ora quase branco, ora quase negro, da rocha dura que nos ladeia. Descubro mais tarde que a estrada corre ao lado do Rio Sella e que desce até Cangas de Onis desde a província de Leão, onde aliás ficava situada a aldeia de Caín.
Chegados a Cangas de Onís, tempo para mudar de autocarro, que finalmente nos há de transportar até Poncebos. No total, a viagem de regresso leva mais de três horas de autocarro, foi grande a volta que demos no dia de hoje. Em direção a Poncebos, a estrada não melhora. Há momentos em que aperto a mão do Tó com força, tenho mesmo medo. Como viajo do lado direito do autocarro, à janela, posso jurar que houve momentos em que me senti suspensa no vazio. Não havia berma e o motorista, na minha perspetiva, ia demasiado depressa. A ideia de um acidente não me sai da cabeça e só quero que esta viagem infernal chegue ao fim. Sei que admiro a paisagem com fascínio, mas o meu instinto de sobrevivência obriga-me a desejar pela segurança de paragens com cota mais baixa e com os pés assente na terra. A verdade é que nunca gostei de voar…
O troço até ao parque de estacionamento volta a devolver-nos às margens do rio Cares que, selvagem, continua a correr no seu leito estreito. Fechamos o ciclo já com saudades deste dia que nos colocou perante a esmagadora força da natureza e estamos gratos e reconhecidos e muito conscientes da nossa pequenez. Fica, sem dúvida, a vontade de voltar.

Regresso ao parque e jantar. Nova experiência com a Sidra Asturiana. Que desilusão!!! A sidra afamada das Astúrias sabe a uma água-pé deslavada e dizemos em voz alta a nossa perplexidade, estávamos convencidos de que a sidra ao natural devia ser um parente pobre. Estávamos, como havemos de ver, muito enganados e já não estava longe o momento da nossa conversão, que seria dali por dois dias.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Fica a vontade de voltar (IV)

Depois de uma interupção, longa, volto à crónica de viagem. Não gosto de deixar coisas por terminar. Ainda estou na Ruta del Cares...


A parte final do percurso pela montanha revelou-nos gratas surpresas. Atravessámos o rio sobre pontes de ferro diversas vezes. Eram cada vez mais frequentes as passagens pelo interior da rocha, muito húmida, com poças de água pelo chão. A garganta por onde corre o rio foi estreitando cada vez mais. Tínhamos a ilusão de que, se estendêssemos as mãos, tocaríamos na parede rochosa do outro lado. Até que por fim, chegámos ao ponto em que a força do rio é travada por uma barragem alta, enquanto parte do seu curso é desviado pelo túnel que já referi. O ruído das águas é ensurdecer e nós percorremos os metros do túnel na rocha que se tornou a imagem de postal mais conhecida destas paragens. Ao cimo de uns degraus metálicos que sobem ao lado de outros por onde a água do rio se escapa em cascata, somos de novo surpreendidos por mais uma vista do vale por onde o rio corre mais livremente. O leito é mais largo, as pedras são maiores, as águas continuam a ser indómitas. O caminho segue à beira do rio, por um estradão. Renasce em nós uma espécie de esperança. Cruzámo-nos com dois rapazes que seguiam em sentido inverso a comer um gelado!! Afinal a civilização parece estar perto e eu já só consigo pensar no Calipo de limão que hei de comer. Os rapazes tinham o gelado quase intacto, logo a arca não pode estar longe.

Antes do paraíso, paramos a ler uma placa informativa que diz mais ou menos o seguinte: “Rota perigosa. Desprendimento e queda de pedras em todo o percurso. Caminho traçado sobre a rocha sem proteção. Tome especial cuidado. Proibido andar de bicicleta.” O aviso vinha perfeitamente a tempo, tínhamos acabado de fazer a tal rota perigosa. A verdade é que nunca senti o perigo, não sou aventureira, sou mais é inconsciente. Não penso muito antes de fazer as coisas. Sei, depois da dureza da rota, que valeu a pena, que a faria outra vez, que gostaria imenso de voltar. Foi, sem dúvida, das experiências que mais gostei.
Mais placas a informar que a senda não terminava ali. Se a memória não me engana, creio que ainda era possível seguir pela mesma rota durante cerca de vinte quilómetros. Está provado, aqui caminha-se a sério e, sem surpresa, vi muita gente a continuar. Espantada ainda, vi muita gente que me tinha ultrapassado de manhã a inverter caminho e a preparar-se para fazer todo o percurso de volta. Do nosso grupo, sou sem dúvida a que está mais quebrada. Não consigo sequer encarar a hipótese de ter que voltar e sobe-me pelo corpo o arrependimento de não ter comprado os bilhetes para o regresso em Poncebos…
Uma coisa de cada vez. Aprendi com os anos a não demonstrar aos outros as minhas apreensões. Agora vejo imensa gente sentada à beira do rio, também há gente deitada a dormir, há outros que se descalçaram e se encavalitaram nas pedras do rio deixando que a água lhes vá lavando dos pés o ardor e o cansaço da caminhada. Para já, é só nisso que penso. Descalço-me, vacilo sobre as pedras que me magoam, persisto e não desisto. Lá me arrumo de maneira pouco confortável, mas não haverá nada que me possa demover de sentir a frescura da água. É uma sensação indescritível, mas metade do prazer esvai-se perante a temperatura cortante da água: rio de montanha, água gelada, mas tão boa.
O passo seguinte é o gelado. Por entre as árvores avista-se o perfil de uma construção de madeira. Estamos perto. Não é que a dita construção é uma loja de recuerdos que vende gelados e são quatro calipos de limão. Pergunto ao rapaz que nos atende se ainda estamos longe de Caín e ele responde-me que faltam cerca de cinco minutos. Pergunto pelos autocarros – pequeno susto – diz-me que o último sai às quatro (são 15:45!). Alerta-me para a possibilidade de já não haver bilhetes – grande susto. De repente a possibilidade de, àquela hora e naquele estado, ter de fazer o caminho de volta parece bastante plausível. Penso na minha filha de 11 anos e, mentalmente dou-me uma grande repreensão.
Voltamos ao caminho. Nem cinco minutos decorreram antes de entrarmos nas ruas estreitas e parcas da aldeia de Caín. Desculpem, não me lembro de mais nada, senão de ver dois autocarros estacionados num pequeno largo, uma esplanada a que não consegui achar graça e a grandes letreiros a anunciar o número através do qual poderíamos chamar um táxi.
Um bocadinho à toa, alinhei na fila junto aos autocarros, fui percebendo que havia mais gente na mesma situação. Os motoristas perguntaram quem tinha já bilhetes. Eram muitos, porque seria? Separaram os grupos, de um lado os eleitos, do outro os condenados, teriam que separar o trigo do joio vendendo mais bilhetes. O autocarro enchia-se rapidamente, quando me parecia que já não faltariam mais do que seis lugares, consegui os nossos bilhetes. Estávamos salvos! A salvação nem sempre é simples nem barata. O motorista explicou-me (é preciso que se note que nestas coisas sou sempre eu que falo enquanto o resto do corpo da expedição assobia para o lado ou se faz descaradamente de morto) que o autocarro nos levaria até Cangas de Onis, que aí teríamos que mudar de autocarro para seguirmos até Poncebos, mas nem tudo era mau, o autocarro faria uma paragem no parque de estacionamento antes de Poncebos. Este percurso custou a módica quantia de 50 euros. Parece-me que a empresa Alsa  não deve ter problemas de solvência…
Claro que estas reflexões faço-as agora, algumas semanas depois. Na altura, só senti um doce alívio quando atirei o meu corpo cansado para os lugares que me destinaram. 








quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Fica a vontade de voltar (III)

Dia 3 – 06-08-2014

            Como não podia deixar de ser, a noite foi de trovoada. Creio que ainda não houve férias em que não apanhássemos pelo menos uma noite de trovoada. A experiência da trovoada em terras altas para pessoas meridionais como nós tem grande impacto. Se levarmos em conta a validade científica da contagem dos segundos que decorrem entre a visualização do relâmpago e o som da trovoada, tornou-se óbvio que a trovoada estava bem longe, mas o som dos trovões ecoava pelas gargantas e desfiladeiros e prolongava-se por muito tempo. Foi assim uma tempestade com ar épico. Mas a tenda aguentou-se bem e não houve danos materiais. Clima de montanha é assim, imprevisível e chuvoso.
Manhã gloriosa, ar lavado, nuvens no céu, mas sem grande aspecto de chuva. Dada a proximidade a que estávamos da Ruta del Cares (a 7 km) e ainda à nossa expectativa, que era grande, decidimos fazê-la neste dia. Assim, depois do pequeno-almoço, equipámo-nos com umas mochilas com comida e água e lá fomos. Seguimos de carro em direção a Poncebos. Mais uma estrada estreita de montanha à beira da garganta por onde serpenteia o Rio Cares. Li algures que é um dos rios mais selvagens dos Picos da Europa. O que me surpreendeu foi a como a noite anterior aumentou o seu caudal de forma visível a olho nu. Imagino isto no inverno e quando a neve derrete. A cerca de 2 km de Poncebos, há dois orientadores de trânsito, colocados junto a um parque de estacionamento enorme, que nos informam que os parques em Poncebos já estão cheios e que será melhor deixarmos já lai o carro. Também nos disseram que às onze passaria um autocarro que nos levaria até Poncebos. O entusiasmo é um grande combustível. Não quisemos esperar e fizemos essa distância a pé, mas não sozinhos. Começo a acreditar que a Ruta del Cares é mesmo bastante concorrida, há imensa gente a preparar-se para o mesmo que nós, mas temos que admitir que muito melhor equipados, quer com roupas, quer com equipamentos de apoio. Vou confirmando esta ideia de que os percursos pedestres são um desporto muito popular por aqui.
Cruzamos o rio na ponte de Poncebos, junto à central elétrica, onde é visível o momento em que parte do caudal do rio lhe é devolvido. Passo a explicar. A Ruta del Cares é um caminho cavado na montanha que acompanha o canal construído entre 1919 e 1922, desde a povoação leonesa de Caín até à vila de Pocebos, nas Astúrias, levando a àgua do Rio Cares por um canal cavado na montanha, ora a descoberto, ora correndo no seu interior, durante 12 Km. Era este o percurso que nos propúnhamos fazer.
Em Poncebos havia grandes cartazes a anunciar a oportunidade de comprar o bilhete de autocarro que nos permitiria regressar de Caín. Não quisemos comprar, nem nos quisemos informar, prova da nossa impreparação e de algum espírito aventureiro, que, alguns dias depois, me parece pura irresponsabilidade. Mas temos tido sempre sorte, é o que vale.
Assim demos com o início do percurso, cuja placa informativa nos dizia que duraria cerca de seis horas, nada de mais. Ali tinham início outros dois percursos, o da Reconquista, com uma duração de nove horas e um outro para o Refúgio de Cabrones, mais um Pico bem concorrido, este com uma duração de 5h45min. Definitivamente aqui caminha-se a sério.
Claro que o percurso começa logo a subir por um caminho pedregoso e bastante árido, que ao fim da primeira hora de caminho me deixou completamente sem fôlego. O sol da montanha brilha inclemente e lembro-me de um senhor em Cabrales nos ter dito que estava um bom dia para fazer a rota, espero que aquilo não fosse irónico.
As vistas começam desde logo a deslumbrar-nos. São as paredes rochosas que se erguem à esquerda e à direita, íngremes, caprichosas, verdadeiros tratados geológicos que não consigo interpretar completamente, ah, mas queria muito. Torturo o meu filho, que acabou o 11º ano da área de ciências, para me ir explicando algumas coisas, a que ele vai atendendo com alguma impaciência. Aqui vale mesmo a pena usar a máquina fotográfica. Vemos por cima de nós algumas cabras selvagens, ouvimos o piar bem característico das águias, ou outras aves de rapina, que a biologia também não é a minha especialidade. El alguns pontos, o ruído das águas, que não chegamos a conseguir ver, sobe até nós, afirmando o poder do rio que há milhares de anos amolece esta pedra dura.


















Quando se diz que este é um dos percursos mais concorridos é mesmo verdade. Avancei até a hipótese de que as praias das Astúrias são tão calmas, porque a maioria das pessoas está a fazer este percurso de montanha. Arriscaria até a comparar a Ruta com o paredão da Nazaré em Agosto. Havia jovens casais a carregar bebés em mochilas às costas, com um prático protetor para o sol. Havia gente corajosa que faz o percurso a correr. Havia pessoas bem mais velhas do que eu a caminhar animadamente e a ultrapassar-me com uma velocidade que fez com que nunca mais os visse. Havia pessoas em sentido ascendente e em sentido descendente. Cruzámo-nos com uma família completa: um casal, dois filhos, que não teriam mais do que cinco anos, e os avós, iam caminhando um pouco mais devagar do que a maioria das pessoas e animando as crianças com a aproximação de uma gruta, que é quando o percurso avança pelo interior da rocha. Não me lembro de todos os exemplos que me surpreenderam, mas eram diversos e diferenciados.
De vez em quando, o canal corria a céu aberto. Trepávamos para ver a água que deslizava rapidamente, a uma boa altura e transparente. Com o calor que estava, ainda bem que no canal se ia repetindo o aviso da proibição de tomar banho por se tratarem de águas rápidas, a tentação era muito grande. Em alguns pontos, a parede abria uma brecha mínima de onde jorrava um fio de água para o caminho e era ver-nos a aproveitar para nos molharmos um bocadinho.
Emocionante foi também o momento em que se assinalou que tínhamos saído das Astúrias e já estávamos em território leonês.

Fomos pontuando a caminhada com paragens, ora para apreciar o espetáculo natural esmagador que tínhamos perante os olhos, ora para comermos, ora para aproveitarmos umas breves tréguas de sombra, mas sempre fascinados e encantados, sim, e também cansados.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Fica o desejo de voltar (II)

Dia 2 - 05-08-2014
           
           
            A tenda está montada, quer isto dizer que estamos instalados. Os outros voltaram a deitar-se e continuam a dormir, eu sentei-me cá fora a ler: A viagem dos inocentes, de Mark Twain. Parece apropriado ler um relato de viagem quando se está a viajar. É uma leitura apelativa e, em alguns momentos, verdadeiramente divertida. À minha frente uma numerosa família ou grupo de viajantes holandeses toma o pequeno-almoço. Nunca houve parque de campismo em que me instalasse onde não houvesse holandeses. Tenho para mim que são o povo que mais faz campismo. Era inevitável, também o sono se abateu sobre mim. Fui dormir.
            Dormi pouco, porque os ruídos do parque me acordaram e consegui convencer o Tó a levantar-se também. Aos miúdos parece que nada os vai arrancar da cama nas próximas horas tão pregados estão.
            Resolvemos sair do parque a pé. Não conhecíamos o sítio onde estávamos, fomos andando pela zona pedonal. À nossa frente ergue-se uma colina verdejante onde pastam vacas, mais acima uma parede de rocha, de cor cinzenta, contrasta com o verde das pastagens mais abaixo. O rio ouve-se distintamente. Junto à entrada da primeira casa que encontramos dois espanhóis falam da maneira como vão ocupar o seu dia, distingo a intenção de irem a Llanes. Também nós lá queremos ir. Logo depois, passamos por uma loja de artigos regionais, com destaque para a sidra e para o queijo de Cabrales, há também muitos enchidos. A loja dispõe ainda de um merendero onde se servem tapas e pratos típicos asturianos. A zona de refeições fica sob as copas das árvores, as mesas são de plástico, mas tem muito bom aspecto. Cruzámos a ponte sobre o rio, as águas são absolutamente transparentes e o curso é rápido. À nossa direita outro restaurante, sidreria, vamos tomando nota. Finalmente, encontramos um supermercado, que anuncia fruta das Astúrias. Entramos e para nos estrearmos compramos um pouco de queijo de Cabrales, que pertence ao tipo queijo azul, parece ter mais bolor do que queijo… Procuramos sidra. A sidra era um dos produtos que nos trouxe às Astúrias. Vínhamos com a informação de que é o produto mais conhecido das Astúrias, verdadeiro emblema nacional e símbolo de identidade. Já tínhamos estado numa zona de sidra, na Normandia, mas não houve aí tempo para conhecer o produto e as suas variedades. Junto à secção das bebidas espirituosas encontramo-la. Havia a sidra natural, que não conhecemos, e outras duas variedades. Optámos pela marca El Gaetero. Parecia a mais próxima da que tínhamos encontrado na Normandia e mais semelhante à marca Somersby, de que todos gostamos muito. Conto isto para depois se perceber como era desmedida a nossa ignorância a respeito da sidra e da forma como deve ser bebida. Não estávamos iniciados nesses ritos tão antigos e importantes para degustar a sidra asturiana. Mas viajar é aprender…
            Almoço no parque, é sempre piquenique, é sempre agradável. Deixa sempre uma sensação de bem-estar. Durante o almoço, definimos como iríamos ocupar o resto do dia. Uma vez que o território das Astúrias tem cerca de 350 km de costa, optámos por uma ida à praia.
            O destino escolhido foi a praia de Torímbia, em Niembro, no concelho de Llanes, porque tínhamos lido que era uma praia idílica, porque estava relativamente perto. Saímos de carro em direção ao centro da vila, muito típica, com casas cuja altura não excedia os três andares, com uma boa oferta hoteleira e uma excelente oferta de cafeterias, restaurantes e bares. Os espanhóis têm mais o culto da vida social e de exterior do que os portugueses.
Atenta às indicações, verifiquei a existência e uma placa que indicava a direção da conhecida Ruta del Cares a 7 km. Tomei nota. Havia ainda a indicação do miradouro Naranjo de Bulnes, ou Pico Urriellu, o tal que é muito conhecido. Tomei nota.
A estrada segue até Poo de Cabrales e depois começa a subir vertiginosamente contornando os picos que envolvem o vale onde nos encontramos. As vistas voltam a ser surpreendentes e suspendemos a respiração, sem deixar de ter a boca aberta. Concluímos em conjunto que o lugar é mesmo bonito. Há zonas da estrada que são escavadas na rocha que fica suspensa sobre nós. Algumas vertentes têm formas caprichosas, noutras a erosão tem trabalhado tanto sobre a rocha, que as vertentes têm, na verdade, um aspecto instável. A informação do perigo de derrocada é quase contínua. Há passos em que aceleramos quase inconscientemente, porque não nos apetece estar por ali. As formações geológicas, a uma escala diferente, fazem-nos lembrar as serras de Aire e Candeeiros. Terei que investigar para confirmar esta hipótese. Por outro lado, há zonas que fazem lembrar os Alpes. Um dos países que gostaria de conhecer pela sua beleza natural é a Irlanda, a verdade é que a paisagem asturiana me faz lembrar as imagens que tenho visto da Irlanda, estas montanhas tão verdes, a proximidade cultural, as raízes celtas, até os trajes tradicionais e o uso da gaita de foles me transportam para lá.

Chegados a Niembro, estacionamos junto à estrada, porque as ruas da povoação parecem estreitas demais para comportar trânsito. Seguimos a pé as indicações de praia. O caminho, mesmo dentro da povoação é bastante íngreme. Passam alguns carros por nós e começamos a sentir que possivelmente deixámos o carro longe de mais. Atravessamos toda a povoação e estamos agora numa zona de colinas suaves e somos surpreendidos pela vista do mar à nossa direita. Estranhamente calmo, parece um vasto espelho de água, mais lago do que mar. Ao fundo avistamos a praia de Toranda e comentamos que a água deve ser muito fria por haver tão pouca gente na água, quando achamos que está tanto calor. Serpenteiam à nossa frente vários caminhos que atravessam estas colinas. Os campos têm um tom amarelado devido ao restolho, foram ceifados recentemente, os fardos de silagem ainda estão na terra. Subimos, subimos, subimos. Há carros estacionados dos dois lados da estrada, a decisão de ter  deixado o carro longe já parece mais acertada.
Quem sobe tem que descer e, assim que o começamos a fazer avistamos a praia de Torímbia. É uma praia em forma de concha, muito semelhante à forma da praia de S. Martinho, mas muito mais pequena. Está rodeada por esta colina que a aconchega e protege e ladeada por formações rochosas, a areia é muito branca. Do lugar onde nos encontramos, conseguimos perceber a transparência das águas, porque se vê o fundo de areia e as rochas. A caminhada é penosa, está muito calor, mas nada nos faria desistir agora.
Em Roma, sê romano, à nossa frente um casal atalha pelo meio da colina, apesar de ser uma descida íngreme, fazemos o mesmo. A descida termina junto a um restaurante que fica escondido num canto da praia, cuja esplanada está cheia de gente ruidosa e com ar bem disposto. Descemos um pouco mais e eis-nos chegados à praia.
Fomos imediatamente para a água, que estava ótima, contrariamente às nossas suposições. É macia, transparente e a ondulação é suave. Sem exageros, foi dos melhores banhos de mar da minha vida, talvez tenha sido da antecipação. Passamos o resto da tarde ali, creio que pelo meio houve mais umas sestas. Depois regressamos ao parque e o dia terminou sem história, mas com glória.

É preciso ainda fazer um parêntesis: a praia de Torímbia, talvez pela sua localização e difícil acesso é uma praia de naturistas, não só , mas também, pormenor que incomodou um pouco os membros mais jovens da expedição…